"Fazer da prática cotidiana o ponto de partida para a construção do conhecimento libertador é, sem dúvida, o que torna para mim a obra de Paulo Freire sempre atual e desafiadora. Criar e recriar coletivamente leituras de mundo libertando oprimidos e opressores de práticas desumanas, é uma política sociológica, mas também meta epistemológica e antropológica do educador comprometido com a transformação da realidade injusta e antiética".(1)
Em meus tempos de aluno universitário, tinha como fonte de renda as aulas particulares domiciliares de química que ofertava a alunos das escolas particulares da cidade onde residia. Geralmente durante as aulas era servido um lanche, que em muitas das vezes, se diferenciava dos alimentos que normalmente havia em minha casa. E no intuito de tentar conduzir a atenção dos alunos para o estudo que estávamos desenvolvendo, procurava conversar sobre as propriedades dos materiais contidos naqueles alimentos. Foi então que me dei conta da riqueza de conhecimentos que havia em nossas casas. Em cada residência havia um laboratório vivo.
Conceitos complexos tais como: quantidade de matéria, diluição, concentração, átomo, substância, conservantes, inibidores, i.e. estavam representados diante dos nossos olhos. Aquilo que os professores tentavam representar em seus quadros negros, nó podíamos aprender facilidade. Digo nós, porque não foram poucas as vezes em que fui estudar com os alunos e eles mesmos relembrando as informações decoradas em suas aulas, me apresentavam os argumentos suficientes para juntos aprendermos. Meu trabalho por muitas vezes era o de formular perguntas dentro daquilo que ela já sabiam. E eles mesmos me ensinavam. Era no embate entre o conhecimento teórico, apresentado pelos alunos, e o conhecimento empírico apresentado por mim, que juntos compreendíamos o conhecimento.
Certa vez, fui visitar um comunidade nos arredores da cidade de Lima Campos, interior do Maranhão e me deparei com uma cena um tanto incomum, até mesmo para a minha cidade de origem. Havia escola que estava fechada por causa da precariedade da infraestrutura. Os banheiros estavam completamente danificados, os mato tomava conta do pátio e as cadeiras estavam quebradas. Fui embora para a minha casa com aquela cena na cabeça e jamais consegui esquecer. Muito tempo depois, fui trabalhar em uma escola que havia sido inaugurada há menos de um ano e as cenas que contemplei não eram tão distantes das cenas guardadas na minha mente daquela escola no maranhão.
Desta vez percebi que podia fazer algo para transformar o lugar em algo melhor para se conviver e com pequenos gestos diários fui percebendo que os alunos estavam dispostos a contribuir para melhorar o ambiente no qual se encontram.
Gesto número 1: minha primeira ferramenta ao chegar em sala de aula era uma vassoura. Nos primeiros dias eu mesmo varria a sala, na presença dos alunos.
Com o passar do tempo, eles mesmos passaram a realizar a tarefa e com mais algum tempo, o tipo de sujeira que precisávamos varrer, se resumia ao pó de nossos calçados.
Gesto número 2: veio da parte da direção da escola - as cadeiras quebradas eram reparadas na própria instituição e nas nossas aulas fazíamos questão de relembrar dia a dia, a necessidade da conservação dos espaços públicos. Da minha parte, desenvolvi um removedor para limpar os rabiscos de caneta e grafite das carteiras. E os alunos se divertiam muito ao limpar as próprias carteiras.
Gesto número 3: os alunos sugeriram o desenvolvimento de um projeto de educação ambiental. A parceria com uma instituição de ensino superior que atuava na cidade contribuiu para aumentar a motivação dos alunos. Como resultado, a escola recebeu o prêmio "Amigos do Cerrado" e ganhou o seu primeiro computador. Alguns anos mais tarde, a direção da escola concorreu ao Prêmio Nacional de Gestão Escolar e a equipe gestora alcançou o primeiro lugar no Distrito Federal. Resultados de varias ações integradas desenvolvidas pela comunidade escolar, tendo o meio ambiente como eixo estruturador.
Vejo a pedagogia da libertação de Paulo Freire como um convite explícito a, viver a esperança a partir da situação dada tendo consciência de mutabilidade. Se podemos transformar melhorar o ambiente à nossa volta, para melhorar a nossa visão sobre ele, podemos mudar a nós mesmos para melhorar o nosso olhar sobre nós mesmos. A natureza em sua imensa experiência, trabalha com o que tem a sua disposição para a construção do belo. Porque o belo despertar o olhar e o interesse pela visitação. O belo é inspirador e motivador. E no momento em que enxergamos a beleza no ambiente e que nos encontramos e nos colocamos diante do ato transformador, transformamos a nós mesmos.
Quando compreendo que a educação começa em casa, imagino que a minha casa começa em mim mesmo. Ao aprender comigo mesmo, sobre os meus atos, emoções, medos e mitos, aprendo sobre parte do mundo. Se esqueço de mim mesmo para aprender apena sobre o mundo, o mundo que não está diante dos meus olhos, ouvidos, tato, paladar e audição, permaneço desconectado da humanidade que reside em mim mesmo, torno-me consumidor das culturas estranhas ao meu habitat, torno-me opressor de mim mesmo.
Insisto, o conhecimento verdadeiramente transformador, não é aquele importado de culturas estranhas ao nosso meio, mas aquele construído e reconstruído por meio da reflexão e do diálogo a partir da comunidade na qual coexistimos. O ponto de partida para o verdadeiro conhecimento não pode ser outro senão aquele que reside na maior parte de nossas ações, porque é sobre elas que, por vontade própria, ou por força da opressão que nos encontramos, que somos obrigados a refletir, para encontrar o caminho para a libertação.
Recordo que na minha infância, conversava muito com o meu irmão sobre o que seríamos quando adultos. Ele insistia que não queria ser eletricista como o nosso pai porque o ambiente de trabalho era humilhante e opressor. Sonha em viajar para a cidade de São Paulo porque lá teria mais oportunidades. Completada a maioridade, partiu rumo ao seu sonho. Chegando lá, o único emprego que conseguiu foi em uma oficina mecânica para trabalhar como eletricista. Ganhou dinheiro outros problemas. Em seu ambiente de trabalho, a ordem era condenar as peças dos automóveis para que o dono da oficina pudesse lucrar mais sobre os serviços prestados aos clientes. Em uma das visitas que lhe fiz em São Paulo, quando ele me relatou sobre a natureza do seu emprego e sobre sua infelicidade naquele lugar, tentei lhe orientar para que buscasse um outro post de trabalho. Passados dois anos ele decidiu que deixaria São Paulo para montar uma panificadora no interior da Bahia em parceria com um colega de trabalho. Reuniu suas economias e seguiu em frente. Passados alguns meses e tendo consumidos todos os recursos angariados na oficina tornou-se incômodo na casa do colega e acabou sendo convidado a se retirar. Mais uma vez se viu de volta a sua terra natal, trabalhando com nosso pai e por ocasião deste, o meu irmão acabou herdando suas poucas ferramentas e assumindo o seu ofício. Hoje, casado, pai de duas filhas, dono de sua própria casa, o meu querido irmão mais velho goza de profícuo respeito dentre seus clientes e amigos.
Na concepção de escola do povo e para o povo, entendo que uma oficina mecânica, todos são alunos e todos são professores. Nela existe o embate entre os opressores e os oprimidos. A luta pela sobrevivência, a busca pelo aperfeiçoamento das técnicas, as intercorrências da procura e da oferta por serviços que influenciam no senso de competitividade dos profissionais, são elementos que se interpõem ao diálogo dos personagens.
O fato de nosso pai ter tornado-se um excelente conhecedor do ofício que desenvolvia, tendo sido inclusive iniciador de muitos profissionais que ora eram seus concorrentes, gerou certa animosidade que certamente se estendeu para seus filhos.
Para nós, a autoafirmação no ofício deveria vir não apenas pela aprendizagem dos conhecimentos ensinados por nosso pai, mas também de um amadurecimento sobre as formas de relacionamento com as pessoas, pautado pelo respeito as opiniões contrárias e pelo diálogo aberto sobre as questões que geravam tensionamento.
A opressão quando nos sufoca, nos impõe o desejo de abandonar a aprendizagem. Faz-se como ato desmotivador, desumanizador, porque provoca no ser humano o sentimento de incapacidade. O abandono de sua história, não implica na correção dos problemas. A distância física não distancia a necessidade da libertação do que oprime. Por mais distante que vá, o desejo do ser humano em processo de humanização será sempre o de retornar ao seu passado e lograr êxito naquilo em que se sentiu fracassado.
E aqueles que conseguem, se sentem verdadeiros vitoriosos. No entanto, mais vitorioso será, se conseguir ajudar a fazer com que o seu opressor também seja libertado. O opressor carrega consigo a sorte de não poder libertar-se sozinho. Precisa do oprimido para libertar-se. Apenas ao contemplar a vitória do oprimido poderá galgar a própria vitória. Já o vitorioso, que antes foi oprimido carrega consigo a sorte de ajudar na libertação de quem antes o oprimia. Caso não o faça, sua vitória não será completa. A vitória completa só poderá existir se opressor e oprimido forem libertos um pelo outro e um para o outro. E se juntos, compartilharem desta libertação.
(1) SILVA, Antonio Fernando Gouveia da. Pedagogia como currículo de práxis In: A pedagogia da libertação de Paulo Freire/ Ana Maria Araújo Freire (Org). São Paulo: Editora UNESP, 2001. p.33.
Na concepção de escola do povo e para o povo, entendo que uma oficina mecânica, todos são alunos e todos são professores. Nela existe o embate entre os opressores e os oprimidos. A luta pela sobrevivência, a busca pelo aperfeiçoamento das técnicas, as intercorrências da procura e da oferta por serviços que influenciam no senso de competitividade dos profissionais, são elementos que se interpõem ao diálogo dos personagens.
O fato de nosso pai ter tornado-se um excelente conhecedor do ofício que desenvolvia, tendo sido inclusive iniciador de muitos profissionais que ora eram seus concorrentes, gerou certa animosidade que certamente se estendeu para seus filhos.
Para nós, a autoafirmação no ofício deveria vir não apenas pela aprendizagem dos conhecimentos ensinados por nosso pai, mas também de um amadurecimento sobre as formas de relacionamento com as pessoas, pautado pelo respeito as opiniões contrárias e pelo diálogo aberto sobre as questões que geravam tensionamento.
A opressão quando nos sufoca, nos impõe o desejo de abandonar a aprendizagem. Faz-se como ato desmotivador, desumanizador, porque provoca no ser humano o sentimento de incapacidade. O abandono de sua história, não implica na correção dos problemas. A distância física não distancia a necessidade da libertação do que oprime. Por mais distante que vá, o desejo do ser humano em processo de humanização será sempre o de retornar ao seu passado e lograr êxito naquilo em que se sentiu fracassado.
E aqueles que conseguem, se sentem verdadeiros vitoriosos. No entanto, mais vitorioso será, se conseguir ajudar a fazer com que o seu opressor também seja libertado. O opressor carrega consigo a sorte de não poder libertar-se sozinho. Precisa do oprimido para libertar-se. Apenas ao contemplar a vitória do oprimido poderá galgar a própria vitória. Já o vitorioso, que antes foi oprimido carrega consigo a sorte de ajudar na libertação de quem antes o oprimia. Caso não o faça, sua vitória não será completa. A vitória completa só poderá existir se opressor e oprimido forem libertos um pelo outro e um para o outro. E se juntos, compartilharem desta libertação.
(1) SILVA, Antonio Fernando Gouveia da. Pedagogia como currículo de práxis In: A pedagogia da libertação de Paulo Freire/ Ana Maria Araújo Freire (Org). São Paulo: Editora UNESP, 2001. p.33.
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